quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Os peixes e a jararaca do anus grande


Fotos Walmir Cardoso
Cuquí, umari, cucura. Cururí, biribá, cupuim. Bacaba, uirapixuna, wacú. Quase nenhum branco sabe, mas essas são frutas da Amazônia profunda, da bacia do Alto Rio Negro, e apenas algumas que constam da lista feita pelos alunos da escola Yupuri, da etnia tukano, para compor seu calendário. Um calendário "estelar dinâmico", na terminologia precisa de quem vem ajudando a montá-lo, o físico e educador matémático Walmir Thomazi Cardoso.

Nesse calendário também surgem jararaca, tatu, escorpião, caranguejo e (o peixe) jacundá, formando um belo exemplo da ligação indissociável entre os fenômenos da terra e dos céus. Os peixes e as frutas do Rio Tiquié (noroeste da Amazônia), onde vivem os índios tukano, são importantes na sua cosmologia e alimentação, aspectos da vida desse povo (e de outras populações indígenas), que não se encontram, de modo algum, dissociados. Há, inclusive, um estudo conduzido pelo ISA que analisa os mitos e conceitos cosmológicos das etnias tuyuka e tukano ligados à origem dos peixes e suas relações com o homem - num mesmo "esforço intercultural" a que se dedicou Cardoso (a convite, aliás, do próprio ISA) e sua proposta de um calendário que recuperasse esse conhecimento.


Os índios tukano tem uma cosmologia bastante sofisticada. As constelações criadas por eles e observadas no céu são parte de um conhecimento que os índios mais velhos passam às crianças nas escolas indígenas - daí o outro sentido do termo dinâmico (além do sentido de mudança dos ciclos), permitindo o relacionamento entre jovens e velhos da comunidade com relação à apreensão tradicional do tempo. Determinada estrela, ao se pôr no horizonte, indica a esses índios fenômenos cíclicos da natureza, como a piracema de determinados peixes e a época de plantio ou de coleta de frutos na mata.

Daí a importância da construção de um calendário tukano, que tanto regula a vida social quanto assegura a sobrevivência desse povo. Esse conhecimento, que não se mede por meses e onde nem a Lua nem os planetas são figuras centrais, não tinha, até então, registros escritos, e estava fadado a desaparecer - a influência não-índia, que se deu a partir do século 19, alterou de modo significativo a medida de passagem do tempo tukano. Assim, explica Cardoso, embora muitos usem relógios e os meses se sucedam com os mesmos nomes que usamos, seu significado e mesmo sua raíz etmológica (como o mês de abril, que no calendário não-índio está associado ao renascimento da vegetação no hemisfério norte) não fazem sentido para os que moram na região amazônica.


Tais explicações tem uma beleza, eu diria, singela. "Cabeças, rabos e corpos de animais, que se configuram como representações do céu tukano, marcam situações meteorológicas razoavelmente definidas entre verões e invernos", explica Cardoso em sua pesquisa. "O nível do rio informa o tipo de peixe e sua abundância, e é uma categoria fundamental na definição do ritmo da passagem do tempo para populações ribeirinhas", continua ele. Os índios tukano vivem à margem do rio, e, para alcançá-los, é preciso 24 horas de viagem de barco (2 de 12 horas cada) desde a cidade de São Gabriel da Cachoeira, porta de entrada para do Rio Negro (e de onde veio a dona Brazi do meu post anterior).


A jararaca dos anus grande

Uma das diversas constelações observadas pelos tukanos é, por exemplo, a da jararaca do anus grande (que é a grande ursa da nossa tradição greco-romana). Quando ela aparece no céu, é sinal de que os peixes sumirão dos rios. Como ela tem um anus grande, a jararaca, ao encostá-lo no rio, permite a entrada de todos os peixes em seu corpo, o que explica o desaparecimento deles dos rios. Sua chegada anuncia uma série de enchentes no Tiquié, que são acompanhadas de uma menor fartura de peixes, a principal fonte de proteína dos ribeirinhos. É nessa mesma época que as jararacas saem de suas tocas à procura de alimento, justificando sua presença nos céus.


Na construção do calendário orientada por Cardoso, os pequenos índios registraram em belos desenhos (eles não concebem a ideia de rascunho) as constelações observadas e registraram por escrito as ocorrências da natureza, combinando conhecimentos tradicionais e aqueles que fazem parte da sua vida atual. São as constelações e seu ocaso que anunciam o momento de uma determinada floração ou a desova de determinado peixe. Estabelecidos as principais constelações para cada época do ano, foram estabelecidos os parâmetros principais que deveriam constar nesse calendário circular: o nível do rio, as flores - flor de aracu, flor de açaí, de pupunha, de maracujá, laranja, jenipapo, caju, jambo, pimenta, bacaba - e os frutos, como os que forma listados no começo deste post. A relação de frutos é grande, como a de flores também, e muitos exemplares foram deixados de lado por falta de correspondentes em língua portuguesa (a primeira foto deste post é de alunos Tuyuka, que também fizeram uma oficina com Cardoso).


A ideia de que a Amazônia é um grande e verde bloco de riquezas alimentares também é enganosa. Cardoso reforça que a Bacia do Rio Negro é uma das mais pobres da Amazônia e estudiosos tem mostrado como os povos indígenas desta região desenvolveram formas sofisticadas de adaptação, inclusive alimentar, para driblar a terra ácida e a pobreza das águas dos rios. Outros "círculos" do calendário incluem os peixes que sobrem o rio (numa determinada ordem), seguido dos animais que sobem o rio - inclusive, o curupira.


Está ficando comprido, eu sei. Deixo para falar no próximo post sobre os dabukuri, os rituais alimentares dos tukano.

9 comentários:

Anônimo disse...

Cris,

Taí um belo e interessante assunto, que vai gerar curiosidade e com isso vai gerar também conhecimento e divulgar uma cultura que passaria desapercebida não fosse sua postagem. Mais uma vez parabéns por sua generosidade em compartilhar conosco essas descobertas que merecem ser divulgadas.
Estou curioso pra ler mais.
Bjs!
Agilson

Unknown disse...

Caro Agilson,
Vc, como sempre, um querido seguidor do sejabemvinho. Obrigada e que bom que vc está curioso para ler mais!
fasça o download da tese, é relamente um trabalho muito bacana!
um beijo,

Anônimo disse...

Cris,

Acabo de baixar o PDF com a tese do Walmir Cardoso.
Parece ser um lindo trabalho.
Mais uma vez obrigado.
Bjs
Agilson

Unknown disse...

Legal, Agilson!
Vc vai ver, por exemplo, como os meninos são caprichosos. Eles não concebem a ideia de rascunho: o desenho tem que sair pronto e bonito!

beijos e boa leitura,

maria disse...

Vai para meu twitter...

maria Thereza.
.

Unknown disse...

eba, terê! é isso aí, vamos divulgar!
bjs

Júlia Rosemberg disse...

Adorei, Cris.
Beijos da Júlia Rosemberg

Anônimo disse...

Que belo trabalho, não?!
Pois é, Cris, Cultura tem de ser divulgada para ganhar mais valor, principalmente quando mostra raízes dos rincões brasileiros.
BJ
Ensei

Anônimo disse...

Bom dia,

acabo de participar de uma sessão de boas risadelas com meu caro amigo Daniel, que por sinal é seu fã hein.

Esqueci o que eu ia dizer

mas espero que o blog esteja indo bem

beijos