terça-feira, 9 de março de 2010

História do sabor ou do gosto?



Quando fui chamada para trabalhar na redação da revista menu, fiquei incumbida de cuidar da seção Estante, que traz resenhas de livros de gastronomia. Adoro ler. Mais do que cozinhar. E adorei resenhar livros. Saí da menu, mas vira e mexe tem resenha minha por lá. Também fiz algumas para a revista Gula. O resultado é que nunca comento livros por aqui até que estas resenhas sejam publicadas. Muitas vezes reproduzo-as no blog (outras, esqueço), mas elas são sempre curtinhas - e eu adoro estourar o número de toques encomendados. Pois há mais para comentar do que permite o exíguo espaço dedicado a livros - uma área que merecia mais páginas das publicações especializadas, tamanho tem sido o crescimento deste mercado... (como questionável, também, vem sendo a qualidade de muitas obras, principalmente as que compilam receitas). Por isso, é preciso mais linhas do que as dedicadas à crítica de um vinho para se avaliar um livro.

Gostaria de dedicar um par delas a uma obra que ganhou recentemente edição em português pelo Senac São Paulo e que, embora tenha sido, na minha opinião, um dos destaques editoriais de 2009, teve pouca projeção e análise: o livro História do sabor.


The History of taste surgiu em edição caprichada em 2007, publicada pela editora da Universidade da Califórnia. Duas coisas me chamaram atenção assim que confrontei ambas as publicações: o cuidado do Senac em fazer jus à edição original (a única mudança é a capa, menos barroca, mas não mais bonita do que a norte-americana) e o pequeno deslize na tradução do título da obra. "História do gosto" me parece uma tradução mais apropriada para tratar de um universo mais amplo do que sugere a dimensão fisiológica do termo escolhido. Pois o livro é uma compilação de estudos, feitos por especialistas de renome, em torno desse único tema, da pré-história aos nossos dias.

Organizado por Paul Freedman, professor de História da Yale, História do sabor oferece uma abordagem histórica e sociológica da alimentação relativamente abrangente, tanto em termos de periodização quanto em relação às sociedades estudadas: embora o acento seja predominantemente europeu, a obra já abre espaço para análises do gosto “dos outros”, como o da China Imperial e o do Islã medieval. Há artigos sobre o gosto europeu na Idade Média e no Renascimento. O período moderno é dedicado a assuntos como o desenvolvimento do restaurante no século 19, as inovações culinárias após 1800 e a nouvelle cuisine dos anos 1970. Ricamente ilustrada, oferece no final a bibliografia utilizada como base por seus autores em cada um dos capítulos.

Alguns textos merecem destaque pelas ideias que procuram apresentar ao leitor. Ideias estas que, geralmente, permanecem confinadas a trabalhos mais acadêmicos. Uma delas é tratar o gosto no medievo numa relação mais aproximada, e não distante e independente, das teorias médicas vigentes no período, que em grande medida ditam aquilo que os nobres devem ou não devem comer para manter sua saúde. Tais teorias conduzem, inclusive, a seleção de ingredientes e modos de cozimento mais apropriados a cada "perfil".

Outro texto interessante, escrito por Hans Teuteberg, trata do impacto das inovações tecnológicas a partir de 1800. Para desenhar este quadro, o autor se vale do contexto alemão - país que, ao lado da França, conduziu no século 19 boa parte dos estudos químicos envolvendo nutrição e fisiologia animal. Nesse cenário surgem personagens como Justus Liebig, cujo desenvolvimento de um extrato de carne (que mais tarde daria origem aos nossos cubinhos) se tornou referência em toda a Europa e Estados Unidos.

Numa obra voltada ao grande público, entretanto, algumas noções colocadas de maneira mais geral podem passar uma ideia dos fatos pouco matizada. Identifico pelo menos dois exemplos. O primeiro deles é á quantificação de restaurantes após a Revolução Francesa, na ordem de cerca de 900 (alguns contabilizam em mil) em 1825 e o dobro em 1834. À primeira vista, parece um número exagerado para o período se não se levar em conta outro texto no mesmo livro, escrito por Elliot Shore, que parametriza a contextualiza a noção do "estabelecimento" restaurante a partir do final do século 18.

A outra diz respeito ao nascimento do restaurante. Alain Drouard, conhecido historiador da alimentação francês, cita, em determinada passagem de seu artigo sobre a cozinha francesa nos séculos 19 e 20, que "no começo desse período [século 19], a maioria dos chefs era oriunda das grandes residências do Ancient Régime que caiu durante a Revolução." Tal passagem pode facilmente remeter à ideia corrente, já contestada brilhantemente por Rebecca Spang no importante livro A Invenção do Restaurante, de que o restaurante moderno surgiu no esteio da Revolução Francesa, quando os chefs da nobreza, diante da morte e perseguição aos seus ricos patrões, se viram sem emprego e se estabeleceram por conta própria. Na verdade, não creio que seja essa a intenção de Drouard que, em artigo publicado em obra imediatamente anterior comentava inclusive a falta de dados históricos sobre os cozinheiros desse período, e que chefs desse calibre eram, na verdade, pouquíssimos. O problema é da síntese, suponho.

Detalhes à parte - e cabe aqui considerar que fatos históricos são sempre interpretações, jamais verdades definitivas -, História do Sabor é uma obra necessária, por apresentar um painel de opiniões e estudos atuais sobre a gasstronomia.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parece interessante, vou comprá-lo!

Chopp disse...

fenomenal