segunda-feira, 28 de dezembro de 2009


Fim de ano tem dessas vantagens: muitos encontros com amigos, em restaurantes deliciosos. Pois um dos últimos almoços do ano foi no Mocotó, na companhia da Isabela Raposeiras, de Lourdes Hernández e de Felipe Herenberg. E foi exatamente como eu queria: numa ensolarada segunda-feira, atravessamos a cidade e seu trânsito rumo ao bairro da Vila Medeiros que mais parece uma outra cidade, tal como a Freguesia do Ó.

Talvez tenha sido o horário em que chegamos - às 3 da tarde. O fato é que a casa em nada lembrava o movimento quase insano do domingo. Uma excelente caipirinha de caju abriu os trabalhos, que duraram até às 18h. Não pretendo fazer nenhum eleição dos melhores este ano. Mas o jovem Rodrigo Oliveira é um dos mais promissores cozinheiros desta nova geração e seu restaurante, na minhas opinião, o melhor custo-benefício da cidade.

Sempre penso no Mocotó como um lugar para se descobrir aos poucos, como se ele tivesse "camadas" de sabores. Primeiro, provam-se os pratos de sabores mais fáceis - bolinho de tapioca com queijo-de-coalho, o glorioso escondidinho de carne-seca (um clássico da casa), o delicado baião-de-dois. A musse de chocolate com cachaça é obrigatória na primeira visita, assim como o torresminho, com pedaços absolutamente simétricos e crocantes.

Depois, vale penetrar um pouco mais nos sabores sertanejos. Seu atolado de bode é impressionantemente macio, e a mocofava (caldo de mocotó com favada), de um sabor marcante. O pudim de tapioca com calda de coco queimado é outra ótima pedida.

Depois de uma certa intimidade com o cardápio - o que inclui provar ainda a paleta de cordeiro com legumes assados em molho de melado e acompanhada de farinha-d'água, e a carne-de-sol com alho assado, pimenta biquinho e chips de mandioca -, é hora de encarar o caldo de mocotó e uma d-e-l-i-c-i-o-s-a dobradinha!

Depois de um contato maior com a cozinha mexicana, Rodrigo incluiu, certa vez, o chile piquín - bastante usado na borda de um copinho de tequila - sobre uma fatia de abacaxi, acompanhamento da suculenta costelinha de porco confitada. Quem sabe em 2010, além da reforma por que passa cozinha para abrigar novos equipamentos, não vejamos por lá algumas opções de mezcal, a típica bebida mexicana que deve chegar em breve ao país?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Na areia da praia



Depois de sala de cinema com vinho em taça, agora é a vez de espumante servido na areia da praia. O grupo Miolo resolveu lançar moda neste verão e concebeu um carrinho climatizado - destes do tipo que carrega piucolé - para circular com seus espumantes nas principais praias de Florianópolis. Serão servidos os espumantes Brut e Moscatel da linha Terranova, em garrafas de 250 ml, ao preço de R$ 10. Elas também serão distribuídas em quiosques da beira da praia do litoral norte gaúcho, de Tramandaí a Torres. A Miolo acredita que venderá, assim, 250 mil garrafas entre janeiro e fevereiro.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Estante de Natal



Para mim, o melhor presente de Natal é livro - quase sempre, de comida. Nesta resenha, publicada na revista menu de novembro e dezembro, avalio seis livros recentes - e há uma batelada deles nos últimos meses, notadamente produzidos pela editora Senac, que há algum tempo tomou a liderança deste tipo de publicação.Espero que ajude na escolha do presente - para quem gosta de devorá-los como eu.

Reflexões sobre cozinha
O historiador italiano Massimo Montanari é uma das maiores autoridades mundiais em estudos sobre alimentação no medievo. O co-organizador do já clássico História da alimentação (editora Estação Liberdade, 1998) comanda, também a compilação O mundo na cozinha - História, identidades, trocas, publicado em 2002 e que acaba de ganhar tradução para o português pela Senac-São Paulo. Seu subtítulo indica as linhas de análise adotadas por acadêmicos importantes de diversos países. Françoise Sabban, por exemplo, descortina um tema ainda pouco estudado — a cozinha chinesa imperial (sua época de estudo é o século 14), enquanto o já falecido Jean-Louis Flandrin, o outro organizador de Historia da alimentação e referência em estudos sobre a cozinha francesa, discorre sobre a moderna cozinha europeia. Outros artigos, como os que giram em torno da cozinha das Américas, da herança islâmica nos pratos da Catalunha e da cozinha bolonhesa (este, preparado por Montanari), fazem do livro obra obrigatória para reflexões sobre o presente e o futuro da gastronomia.

O mundo na cozinha: História, identidades, trocas — Massimo Montanari (org.) — Senac São Paulo (262 págs.) - R$ 45


Doces receitas
O volume Confeitaria, da coleção Cozinha passo a passo, da editora Larousse, chama a atenção pela bonita diagramação e pelas fotos que ilustram detalhadamente as 70 receitas doces que o compõem. Traduzida do francês – o título original é Mon cours de cuisine -, o livro da confeiteira Marianne Magnier-Moreno traz receitas clássicas francesas e britânicas, como as de creme inglês, creme chantilly, carolinas, mil folhas, bolo de reis, cheesecake e muffins. Embora deva-se sempre levar em conta que livros de receitas estrangeiros contemplam ingredientes cujas qualidades nem sempre são as mesmas no país para o qual foi traduzido, a o detalhamento das receitas, com fotos de boa qualidade e que cobrem as principais etapas de sua elaboração, pode compensar eventuais diferenças.

Confeitaria: 70 receitas ilustradas passo a passo - Marianne Magnier-Moreno - Larousse do Brasil (256 págs.) – R$ 84


Quitutes da uma poeta
Além de consagrada poeta, Cora Coralina (1889-1985) foi também uma grande doceira. Nascida em Goiás Velho — ex-capital do estado goiano e cidade conhecida pelos doces que produz —, Cora preparava os raros alfenins (delicado doce feito de açúcar puxado, que remonta à Idade Média) doces como o de figo verde e o de mamão vermelho, bolos como o de araruta e licores, cujas receitas são contempladas aqui. Mas, mais do que um livro de receitas, a publicação faz uma homenagem à poeta e contista, ao retratar sua lida nos tachos de cobre e reproduzir algumas poesias singelas que fez sobre sua terra e sua gente, bem como as imagens da Velha Casa da Ponte, construção do século XVIII erguida sobre o rio Vermelho, que atualmente funciona como um museu da grande poeta brasileira.

Cora Coralina, doceira e poeta - Global Editora (114 págs.) – R$ 119


Profissão: cozinheiro
Mesmo com a profusão de escolas de gastronomia pelo país, o Brasil dispõe de pouquíssimas obras técnicas, em português, que auxiliem na formação de cozinheiros profissionais. Assim, seria bastante esperada uma tradução de Chef profissional, um calhamaço de 1.200 páginas concebido pelo Culinary Institute of America (CIA), importante escola de gastronomia norteamericana. Mas volume não necessariamente significa conteúdo, e no afã de cobrir vários âmbitos, sacrifica em profundidade e detalhamento as técnicas e preparos culinários em si. Assim, na seção de identificação de ingredientes, a obra ganha pontos ao tratar e ilustrar bem os cortes de carnes e variedades de peixes, mas pouco acrescenta com relação a frutas e massas. E, embora seja uma edição atualizada (a oitava), nada fala sobre novos equipamentos, produtos ou técnicas de cocção – como o cozimento a vácuo que, aliás, é aplicado na França desde a década de 1970. Afinal, outras técnicas e concepções culinárias estão na ordem do dia, inclusive nos Estados Unidos – uma referência bastante clara na condução da obra, particularmente na seleção das receitas.

Chef profissional – CIA (Culinary Institute of America) - Senac Editoras (1236 págs.) – R$ 185

Ciência na cozinha
Uma folheada rápida em Cientista na cozinha, escrita por pesquisadores argentinos para a Coleção Ciência que Ladra, traduzida pela Civilização Brasileira, remete imediatamente ao químico francês Hervé This, que cunhou ao lado do físico húngaro Nicholas Kurti, no final dos anos 1980, o termo gastronomia molecular para se referir aos processos químico-físicos das operações culinárias. Mais simples, a obra argentina limita-se a explicar suscintamente questões que Hervé This destrincha e detalha em intermináveis pesquisas. Dividido como um cardápio, o livro desvenda “misteriosas” reações, como a fermentação do pão, a cocção de um ovo ou o preparo da maionese, usando repetida e impropriamente (como fazem aliás, quase todos os que relacionam ciência e cozinha) o termo alquimista para se referir ao cozinheiro, “mago” dessas operações. Ao fim e ao cabo, porém, oferece conhecimentos sobre Química, com exemplos mais palatáveis do que os oferecidos nas escolas.

O cozinheiro cientista – quando a ciência se mete na cozinha - Diego Golombek e Pablo J. Schwarzbaum – Civilização Brasileira (160 págs.) - R$ 28, na Livraria Cultura

Bolinhos da moda
Febre nos Estados Unidos, os cupcakes viraram moda também na capital paulista, com vários confeiteiros dedicados ao seu preparo. Um prato cheio, portanto, preparar esses pequenos bolinhos, assados em formas de papel e com farta cobertura à base de manteiga, sob a assinatura de Martha Stewart. Em Martha Stewart’s Cupcakes, livro lançado há pouco na América, a prolífica equipe de editores da revista que leva o nome da autora, empresária e apresentadora de TV oferece 175 receitas da guloseima. A bela edição, com fotografia impecável, traz receitas para o dia-a-dia, como cupcakes de cenoura e tiramisù, e para datas especiais, com coberturas caprichadas. No fim da obra, instruções sobre ingredientes, técnicas de preparo e finalização. No Brasil, é indicado para iniciados, pois é preciso, antes de tudo, adaptar ingredientes.

Martha Stewart’s cupcakes – dos editores da revista Martha Stewart Living - Clarkson Potter (352 págs.) – R$ 64, 22, na Livraria Cultura

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Os peixes e a jararaca do anus grande


Fotos Walmir Cardoso
Cuquí, umari, cucura. Cururí, biribá, cupuim. Bacaba, uirapixuna, wacú. Quase nenhum branco sabe, mas essas são frutas da Amazônia profunda, da bacia do Alto Rio Negro, e apenas algumas que constam da lista feita pelos alunos da escola Yupuri, da etnia tukano, para compor seu calendário. Um calendário "estelar dinâmico", na terminologia precisa de quem vem ajudando a montá-lo, o físico e educador matémático Walmir Thomazi Cardoso.

Nesse calendário também surgem jararaca, tatu, escorpião, caranguejo e (o peixe) jacundá, formando um belo exemplo da ligação indissociável entre os fenômenos da terra e dos céus. Os peixes e as frutas do Rio Tiquié (noroeste da Amazônia), onde vivem os índios tukano, são importantes na sua cosmologia e alimentação, aspectos da vida desse povo (e de outras populações indígenas), que não se encontram, de modo algum, dissociados. Há, inclusive, um estudo conduzido pelo ISA que analisa os mitos e conceitos cosmológicos das etnias tuyuka e tukano ligados à origem dos peixes e suas relações com o homem - num mesmo "esforço intercultural" a que se dedicou Cardoso (a convite, aliás, do próprio ISA) e sua proposta de um calendário que recuperasse esse conhecimento.


Os índios tukano tem uma cosmologia bastante sofisticada. As constelações criadas por eles e observadas no céu são parte de um conhecimento que os índios mais velhos passam às crianças nas escolas indígenas - daí o outro sentido do termo dinâmico (além do sentido de mudança dos ciclos), permitindo o relacionamento entre jovens e velhos da comunidade com relação à apreensão tradicional do tempo. Determinada estrela, ao se pôr no horizonte, indica a esses índios fenômenos cíclicos da natureza, como a piracema de determinados peixes e a época de plantio ou de coleta de frutos na mata.

Daí a importância da construção de um calendário tukano, que tanto regula a vida social quanto assegura a sobrevivência desse povo. Esse conhecimento, que não se mede por meses e onde nem a Lua nem os planetas são figuras centrais, não tinha, até então, registros escritos, e estava fadado a desaparecer - a influência não-índia, que se deu a partir do século 19, alterou de modo significativo a medida de passagem do tempo tukano. Assim, explica Cardoso, embora muitos usem relógios e os meses se sucedam com os mesmos nomes que usamos, seu significado e mesmo sua raíz etmológica (como o mês de abril, que no calendário não-índio está associado ao renascimento da vegetação no hemisfério norte) não fazem sentido para os que moram na região amazônica.


Tais explicações tem uma beleza, eu diria, singela. "Cabeças, rabos e corpos de animais, que se configuram como representações do céu tukano, marcam situações meteorológicas razoavelmente definidas entre verões e invernos", explica Cardoso em sua pesquisa. "O nível do rio informa o tipo de peixe e sua abundância, e é uma categoria fundamental na definição do ritmo da passagem do tempo para populações ribeirinhas", continua ele. Os índios tukano vivem à margem do rio, e, para alcançá-los, é preciso 24 horas de viagem de barco (2 de 12 horas cada) desde a cidade de São Gabriel da Cachoeira, porta de entrada para do Rio Negro (e de onde veio a dona Brazi do meu post anterior).


A jararaca dos anus grande

Uma das diversas constelações observadas pelos tukanos é, por exemplo, a da jararaca do anus grande (que é a grande ursa da nossa tradição greco-romana). Quando ela aparece no céu, é sinal de que os peixes sumirão dos rios. Como ela tem um anus grande, a jararaca, ao encostá-lo no rio, permite a entrada de todos os peixes em seu corpo, o que explica o desaparecimento deles dos rios. Sua chegada anuncia uma série de enchentes no Tiquié, que são acompanhadas de uma menor fartura de peixes, a principal fonte de proteína dos ribeirinhos. É nessa mesma época que as jararacas saem de suas tocas à procura de alimento, justificando sua presença nos céus.


Na construção do calendário orientada por Cardoso, os pequenos índios registraram em belos desenhos (eles não concebem a ideia de rascunho) as constelações observadas e registraram por escrito as ocorrências da natureza, combinando conhecimentos tradicionais e aqueles que fazem parte da sua vida atual. São as constelações e seu ocaso que anunciam o momento de uma determinada floração ou a desova de determinado peixe. Estabelecidos as principais constelações para cada época do ano, foram estabelecidos os parâmetros principais que deveriam constar nesse calendário circular: o nível do rio, as flores - flor de aracu, flor de açaí, de pupunha, de maracujá, laranja, jenipapo, caju, jambo, pimenta, bacaba - e os frutos, como os que forma listados no começo deste post. A relação de frutos é grande, como a de flores também, e muitos exemplares foram deixados de lado por falta de correspondentes em língua portuguesa (a primeira foto deste post é de alunos Tuyuka, que também fizeram uma oficina com Cardoso).


A ideia de que a Amazônia é um grande e verde bloco de riquezas alimentares também é enganosa. Cardoso reforça que a Bacia do Rio Negro é uma das mais pobres da Amazônia e estudiosos tem mostrado como os povos indígenas desta região desenvolveram formas sofisticadas de adaptação, inclusive alimentar, para driblar a terra ácida e a pobreza das águas dos rios. Outros "círculos" do calendário incluem os peixes que sobrem o rio (numa determinada ordem), seguido dos animais que sobem o rio - inclusive, o curupira.


Está ficando comprido, eu sei. Deixo para falar no próximo post sobre os dabukuri, os rituais alimentares dos tukano.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Enquanto isso... cogumelos!


O próximo post sobre alimentação indígena está saindo do forno! Enquanto isso, algumas belas imagens da série "livros históricos". Esses lindos cogumelos são da obra Histoire naturelle des champignons comestibles et venéneux, de G. Sigard (1883).













quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

As formigas da Dona Brazi e as mulheres baniwa


Manjar de tapioca com formigas no mel de abelha mandaçaia

Com 500 anos de atraso, como gosta de dizer um bom amigo (de garfo e de fogão), a cozinha indígena amazônica chega a São Paulo. Dona Brazi, a índia Baré-cozinheira de São Gabriel da Cachoeira, “descoberta” por Alex Atala, pintou, bordou e, claro, cozinhou em São Paulo na última semana. Depois de encantar o público com seu bom humor em palestra na Livraria Cultura no domingo (alguns momentos foram twitados por mim), Dona Brazi cozinhou no restaurante Tordesilhas na noite de terça-feira. Blogueiros e jornalistas que lá estiveram deram suas impressões sobre o jantar, preparado em conjunto com Mara Salles.

Mara Salles, dona Brazi e Hugo Delgado, do restaurante Obá

Esplêndidos, com ingredientes (pimentas) e preparados (peixe moqueado) trazidos por Josefa Gonçalves de Andrade (este é seu nome) e a sensibilidade e expertise de Mara, os pratos formaram uma combinação harmoniosa da vivência das duas cozinheiras.


Chibé da Mara – água gelada, farinha d’água, cebola, ervas amazônicas (chicória e coentro) e cumari-do-pará

Mas quem provou, como eu, as crocantes formigas – a grande sensação da noite –, o tucupi preto e o chibé (caldo de farinha-d’água e água fresca) apenas espiou pela fresta o complexo universo culinário dos índios da região. Para além de suas qualidades gastronômicas, a tradição alimentar das etnias que habitam o Alto Rio Negro, onde fica a São Gabriel de dona Brazi, é parte integrante de sistemas cosmológicos e sociais complexos, retratados recentemente em dois projetos importantes: um organizado pela pesquisadoras Luiza Garnelo e Gilda Barreto Baré, que originou o livro Comidas tradicionais indígenas do Alto Rio Negro, e outro desenvolvido pelo físico e educador matemático Walmir Thomazi Cardozo, que envolve o estudo das constelações dos índios tukano, uma das diversas etnias locais – entre as tantas, há desana, kubeo, curupaco, baré, baniwa, arapasso... Para não engordar mais o caldo das impressões sensoriais dos pratos já comentados por meus colegas, prefiro rechear meus próximos posts com aquilo que andei lendo sobre esses significados mais profundos, que não se alcança apenas comendo (maravilhosamente, é bom frisar) numa mesa de restaurante.

Salada de cubiu, fruta usada tanto em doces quanto em salgados

A origem do livro citado (que oferece um pouco destas relações e mais de 80 receitas) vem da preocupação das associações de mulheres indígenas de São Gabriel com a substituição das comidas tradicionais por alimentos de baixo valor nutricional, os altos preços que os produtos industrializados alcançam por lá e a mudança cultural provocada por essas transformações, como o abandono dos rituais, que exigem comidas elaboradas especialmente para as diferentes ocasiões. Muitas mulheres jovens de São Gabriel as desconhecem – embora ainda exista uma forte conexão entre as populações das comunidades de origem, onde a vida social é baseada nas relações de troca e reciprocidade dentro das redes de parentesco, e a urbana, onde o associativismo feminino (em torno do artesanato, por exemplo), se configura como fundamental.

Quinhapira de piraíba, peixe abundante na região. A quinhapira é uma caldeirada de peixe com pimentas frescas e tucupi. Foi um dos melhores pratos da noite

Segundo as pesquisadoras, a culinária nas aldeias baniwa foi uma das dimensões da vida social que menos sofreu com os contatos inter-étnicos. Exceção feita aos utensílios e à introdução do sal e do açúcar – de especial interesse é a presença de panelas de alumínio, que, sob o fogão a lenha, escurecem e custam a ficar bem limpas: as mulheres, então, usam-nas para o preparo das comidas, que são transferidas e servidas em “panelas de salão”, perfeitamente areadas, que não foram ao fogo.

Bochecha de queixada, cuscuz de farinha ovinha e legumes. O cuscuz era a cara da Mara

Na cultura baniwa, as pimentas são um componente essencial na transformação das caças em alimentos seguros. Ela “cozinha” a carne de bichos, cuja presença de garras e outros atributos indica sua agressividade e o leva a ser enquadrado como perigoso à saúde, e os torna inofensivos para o consumo, garantindo a saúde. Essa lógica de evitar a periculosidade da comida também se aplica a preparos como o moqueado e o cozido. Nas receitas do livro, surgem algumas delas, de nomes dengosos, como jacitara, urubuquinha, uirauaçú puampé, curucuriquinha.

A jiquitaia (abaixo), preparada por todas as mulheres indígenas do Alto Rio Negro, são pimentas secas por até 5 dias ao sol e, posteriormente, sobre o fogão, para secarem com o calor dele desprendido. Depois são moídas até virarem pó.

Beiju (curadá) de Dona Brazi com manteiga de tucumã e jiquitaia

Os beijus tem elaboração longa e trabalhosa, são consumidos em quase todas as refeições e ganham sabores variados (aliados ao ácido característico, que pudemos conferir no glorioso jantar) dependendo do que se juntar a eles: castanhas, goma de tapioca, formigas piladas – que deve ser um importante modificador de textura, pois confere uma crocância marcante nos pratos em que aparece. Dona Brazi, que já é cozinheira de fama, costumava coletá-las com pau de arumã. Agora, diz que tem “fornecedor”. Ela diz que só valem as formigas “ardosas”, como a saúva. “A maniwara não tem sabor, nem cheiro”, garante ela. Depois de “acalmadas” na água fervente com sal, as formigas são comidas inteiras – os índios baré, como dona Brazi, comem apenas a cabeça, desprezando o corpo. Nas receitas das mulheres baniwa, elas aparecem no tucupi preto, muito usado nos cozidos de peixe (preto não por causa das formigas, mas porque o líquido, extraído da mandioca brava, cozinha até que ganhe cor escura). Achei que elas ficaram deliciosas, ou melhor, bem crocantes no manjar de tapioca – muitos comentaram, porém, que as perninhas picavam muito o céu da boca.

Deixo com vocês a imagem das formiguinhas na boca. Amanhã tem mais comida indígena por aqui.

Traíra moqueada com caruru e vinagrete de tucupi preto com formigas


Sorvete de cupuaçu com banana-ouro assada: uma das duas deliciosas sobremesas que fecharam a noite

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Julia Child, Bassoleil e o boeuf bourguignon



Sexta-feira fui assitir ao delicioso Julie & Julia, filme que comentei aqui no começo do ano. Imperdível, Meryl Streep está esplêndida com Julia Child, e, ao lado de This is it e Deixe ela entrar, completa a trilogia dos meus preferidos do ano (para deixar claro, a minha seleção, baseada nos poucos filmes que vi).

Vários blogs comentam o filme: Roberta Malta foi no Julia Cocina conferir o cardápio inspirado na fita (como diz minha avó), e Bichos dá dicas de restaurantes que servem pratos contemplados na película. Eu só faço dois avisos aos navegantes: 1) comam alguma coisinha - uma empanada, uma salada de frutas, um iogurte, o que for - antes de entrar na sala de cinema; 2) se a ideia for sair para jantar "à francesa", evitem a sessão das 22h. Louca para devorar um boeuf bourguignon, liguei para vários restaurantes na saída da sessão, como o Ici Bistrô, cujas cozinhas já estavam fechando. O melhor é levar um guia de restaurantes embaixo do braço, como o do Josimar Melo, que lista os que servem depois da meia-noite.

A solução foi ir para um bar que serve boa comida, o Astor. O sanduíche de pastrami estava excelente, e de salmão defumado também. Só pecou no pavê de chocolate, doce demais.

Segue a receita que o chef Emmanuel Bassoleil costuma preparar, e que está no livro Os sabores da Borgonha:

Boeuf bourguignon
Emmanuel Bassoleil

Ingredientes

Carne
1 kg de carne de músculo, coxão mole ou alcatra
sal e pimenta-do-reino preta
30 g de farinha de trigo
30 ml de óleo de milho
1 litro de caldo de carne
1 garrafa de vinho tinto (Borgonha)
100 g de cenoura em cubos
100 g de cebola em cubos
2 dentes de alho picados
1 bouquet garni
1 colheres (sopa) de extrato de tomate
2 colheres (sopa) de salsinha picada para decorar
4 torradas de alho para decorar

Guarnição bourguignonne
250 g de cogumelos frescos cozidos
150 g de cebolinhas miúdas
2 colheres (sopa) de açúcar
150 g de bacon em cubos
30 g de manteiga

Preparo

Limpe a peça de carne, retirando os nervos e a gordura. Corte em cubos de 50 g a 60 g cada. Tempere com sal e pimenta-do-reino preta. Coloque o óleo em uma panela grande e leve ao fogo. Quando ferver, doure a carne.

Junte a cebola, a cenoura e o alho e refogue mais um pouco. Polvilhe a farinha e deixe cozinhar em fogo baixo por mais 5 minutos. Acrescente o extrato de tomate, o vinho tinto e o bouquet garni. Cozinhe por mais 10 minutos para retirar a acidez do molho.

Adicione o caldo de carne, tampe a panela e deixe cozinhar por 2 horas, em fogo baixo, mexendo de fez em quando. Quando a carne estiver cozida, separe os cubos de carne e o bouquet garni. Passe o molho pela peneira. Leve o molho de volta à panela e junte os cubos de carne.

Guarnição bourguignonne
Descasque as cebolinhas. Coloque-as em uma panela rasa com o açúcar e metade da manteiga. Cubra com água e deixe cozinhar até que a água evapore e as cebolinhas fiquem caramelizadas. Reserve. Em uma frigideira, doure o bacon na manteiga restante. Acrescente os cogumelos frescos e refogue por alguns minutos. Junte as cebolinhas e retire do fogo.

Montagem

Distribua o boeuf bourguignon em pratos individuais. Cubra com a guarnição e decore com torradas com alho e salsinha picada. Sirva acompanhado de batatas cozidas ou talharim fresco.

Rendimento:
5 porções