segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Frase-cérebro


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"Un pueblo que no bebe su vino, tiene un grave problema de identidad"
Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), escritor, jornalista, poeta e romancista espanhol, recebida por e-mail via o amigo Pedro Sañudo

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Pausa para o café



Ainda vem por aí mais experiências gastronômicas mexicanas (como vcs puderam notar, resolvi postá-las de São Paulo mesmo), mas o assunto da semana é café:

No dia 6 de março, a barista e consultora (e minha confrade de vinhos) Isabela Raposeiras prepara uma degustação de cafés africanos que ela trouxe de sua recente viagem à Dinamarca e Noruega, onde estudou os processos de torra - os dois países, além de grandes e exigentes consumidores de cafés especiais, são especialistas nessa arte. Serão apresentados quatro exemplares do continente, que ela mesma irá torrar: dois cafés do Quênia e dois da Etiópia, de diferentes produtores. Quem participar poderá aprender a técnica de cupping, degustação feita por profissionais, e conhecer a mais nova engenhoca para preparar café filtrado, simplérrima, que Isabela trouxe na mala. Não provei os cafés africanos, mas me esbaldei com um café brasileiro feito nessa "máquina", chamada Aeropress (depois eu conto mais). A degustação acontece às 19h30, e custa R$ 80 (eu já reservei meu lugar). Garanto: vale a pena!

Academia de Barismo (rua Cônego Eugênio Leite, 1.121, Pinheiros, São Paulo, tel. 3375.7400)


A segunda notícia do mundo do café é a 8ª edição do Campeonato Brasileiro de Barista, que vai acontecer no Mube (Museu Brasileiro da Escultura) entre os dias 16 e 18 de fevereiro. O campeão do concurso disputará o mundial, que acontece em Atlanta, em meados de abril. Lá fora, o campeonato mundial de barista é um evento importante: o vencedor passa a ser uma celebridade no universo dos cafés especiais, além de ser uma vitrine para os produtores. O mais recente campeão mundial, o irlandês Stephen Morrissey, chegou hoje ao Brasil, em companhia do mexicano Jose Cleofas, da WBC (World Barista Championship, entidade que organiza o campeonato mundial), responsável por treinar juízes em todo o mundo.

Aproveitando o campeonato, a ABCB (Associação Brasileira de Café e Barista) organizou eventos paralelos, como a palestra de Morrissey e as exposição de produtos e máquinas do setor. Quem está cuidando da organização do campeonato é a revista Espresso, dos amigos Caio Fontes e Marcos Haddad, que fez um belo trabalho no ano passado ao organizar seu próprio campeonato de baristas durante a Fispal. A entrada é franca, mas há taxa de inscrição para algumas atividades. Para mais detalhes, acesse o site www.acbb.com.br.

A disputa acontece entre os finalistas dos certames regionais, que aconteceram ao longo do segundo semestre de 2008, além dos finalistas do campeonato anterior. Para quem ainda não viu uma dessas competições (este ano, faço parte novamente do corpo de juízes), cada candidato tem 15 minutos para preparar 4 espressos, 4 cappuccinos e 4 drinques de assinatura para os 4 juízes sensoriais que estarão julgando as bebidas, além de ser avaliado também por 2 juízes técnicos, que avaliam seu desempenho diante da máquina e do moinho de café. Além desta competição, outras provas prometem atrair atenção dos visitantes. Uma delas é o campeonato de Latte Art, que fez sua estréia na edição de 2007 e também classifica para o mundial da categoria. Nela, 12 participantes devem preparar cappuccinos, macchiatos e bebidas de assinatura com "desenhos" feitos com a espuma do leite - saber vaporizar o leite é, na minha opinião, o grande desafio, tanto nesta competição quanto na oferta de cappuccinos nas cafeterias da cidade.

E, já que o álcool não é permitido em nenhum dos campeonatos citados, a atração Coffee in Good Spirits cuida do assunto. Nela, serão apresentados drinques de café que levam bebidas alcóolicas, numa espécie de síntese entre baristas e barmen. Esta etapa também é válida para as competições internacionais da Scae, a organização européia de cafés especiais.

Por fim, duas novidades: o Cup Tasters Championship, prova de avaliação sensorial do café disputada por 15 provadores de café, e o lançamento de um programa de certificação nacional de baristas. Ou seja, imperdível!

MuBE (avenida Europa, 218, Jardim Europa, São Paulo), das 9h às 20h.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Mezcal, tequila ou pulque?


Nada de limão: mezcal se bebe com fatias de laranja polvilhadas (ou não) com chile piquín

Mezcal é uma verdadeira instituição no México. Embora o tequila (em espanhol, é um substantivo masculino), um tipo de mezcal, tenha ganhado o mundo através das grandes marcas, outras bebidas alcoólicas do gênero são tão importantes quanto qualquer Jose Cuervo. Em meu primeiro contato com um de seus produtores, Jorge Antonio Dueñas, tratei de conhecer logo as diferenças desses deliciosos líquidos originados dos “cactus” mexicanos – ou, corretamente falando, dos agaves.

istockphotoAgave attenuata

Os pingos nos is: os agaves (ou magueys) são plantas suculentas que pertencem a um gênero botânico enorme de mesmo nome, da família das Agavaceae. Os cactos pertencem à outra família de plantas – a outro universo. Embora ocorram nos EUA e na América do Sul, é no México que os agaves se concentram (há mais de 200 tipos, 160 deles no México) e são, muitas vezes, o epicentro da vida mexicana.

Vários destilados derivam dele, dependendo da variedade de agave e das particularidades na elaboração da bebida. São chamados genericamente mezcales, ou seja, um destilado do suco extraído das pinhas (ou cabeças) cozidas de Agave, e incluem tipos específicos como raincilla, bacanora, tequila... O primeiro é feito com o Agave inaequidens, na região de Jalisco, há mais de 400 anos, tendo Jorge Dueñas como um de seus produtores – este eu experimentei: é uma bebida delicada, que desce suavemente. O segundo é também uma bebida regional, produzida no estado de Sonora. Há também o sotol, feito de maneira semelhante aos destilados de agave, mas a partir de outra planta, parecida (Dasilyrion wheeleri). Assim como o tequila – um mezcal feito de uma variedade azul do Agave tequilana na região de Jalisco —, os mezcais e o pulque (a bebida fermentada, que deve ser tomada fesca) são as bebidas mais populares no país. Com mezcais defumados (e não tequilas)temperei toda a minha viagem e ocupei minha mala.

Os agaves estão em boa parte da paisagem mexicana: decoram a entrada e os apartamentos residenciais, os jardins do palácio presidencial, as rodovias, os murais. Adaptado ao deserto mexicano, o maguey não precisa de cuidados, chega a alcançar 2,5 metros de altura e pode demorar até 15 anos para atingir a idade madura e fornecer as bebidas.


E tem uma história maravilhosa, forjada nas culturas pré-hispânicas. Segundo Fernando Benítez, um dos pesquisadores do tema, o maguey guardava os poderes sagrados da Lua — a fertilidade, o erotismo e a morte —, ocupando um lugar magistral nessas culturas, lugar que se converteu em algo bem diferente com a chegada dos espanhóis: ingerido somente por guerreiros e anciãos (todos os outros eram punidos com a morte se fossem encontrados “borrachos”), o pulque converteu-se após a conquista numa “bebida dos vencidos”, sem qualquer significado sobrenatural Além disso, o maguey também encerrava poderes medicinais: com as cinzas de suas raízes secas ou folhas (as “pencas”) queimadas faziam-se remédios. Nos séculos 19 e 20, haciendas pulqueras seestabeleceram em Puebla, Tlaxcala, Toluca e México.

Para obtenção do pulque, os otomís, grandes conhecedores da planta, se apropriam da parte central ou “coração” do maguey (meyolote, na língua otomí), raspam sua cavidade com uma colher e protegem a “ferida” que se formou usando as folhas (pencas) que foram arrancadas. Depois de 3 ou 4 semanas, brota dela o aguamiel, a seiva da planta que se transformará em pulque ou mezcal, recolhida de manhã e à tarde pelos tlaxiqueros - para os otomís, esse processo significava a amputação do maguey, quase como um sacrifício humano.

Destituída de seu coração, o maguey ganha outros usos tradicionais: transforma-se em bancos, em combustível para a cozinha, em colméia para as abelhas, fibras para habitaçao, cordas, verstidos, objetos ornamentais... entre os otomís, seus espinhos eram usados como instrumentos de sacrifício.

A sacralidade em torno do maguey é bem conhecida dos mexicanos de hoje. Uma delas é sua estreita relação com a lua — para os antigos, uma “vasilha cósmica cheia de água”, criadora das nuvens e da chuva. Há Mayahuel, a deusa principal, de cujas 400 tetas emana o pulque; e Tezcatzóncatl, o próprio pulque, deus ao mesmo tempo venerado e temido, tal qual a bebida. Mayahuel desapareceu, mas em seu lugar surgiu a virgem de Guadalupe, a “moderna” senhora dos magueys.


Também as pulquerías eram, desde a colônia, locais festivos onde se reunia todo tipo de gente – negros, espanhóis, índios e mestiços — e em torno das quais várias expressões culturais se desenvolvem, como o artesanato, a pintura mural, os jogos e a música. Para os estudiosos, porém, elas estão em vias de extinção: há dez anos, havia 80 pulquerías na cidade do México; em 1870, eram 822.


Pulquería, em Tlaxcala

Oh Mayahuel, mezcaleria na Cidade do México

Mas se ao longo dos séculos perdeu-se o sentido sagrado e cosmológico da bebida, a modernidade tratou de “desvendar” seus mistérios. Em 1924, o alemão Paul Lindner isolou a bactéria (Termobacterium mobile) responsável pela fermentação inicial do maguey, processo que, depois, é continuado pelas leveduras. Também formatou-se a bebida como um alimento saudável: a aguamiel, rica em açúcar, sais minerais e vitaminas, é tomada como refresco antes de fermentar e continua a servir de base para os atoles. Pulquerías, como a que visitei em Tlaxcala, por exemplo, servem deliciosos pulques curados, ou seja, com frutas, sementes ou grãos (adorei o de pinoli). No Freeshop, encontra-se o xarope de agave, também conhecido como néctar de agave, que tem feito sucesso como substituto saudável do açúcar. O meu já está ao lado do café e do cereal matinal.

Mas, ainda hoje, quem vai “sangrar” os magueys deve ter as mãos limpas, ou seja, não deve ter tocado em nada ruim ou podre — como carne e ovos da galinha —, para que a planta não morra. E a lua, atualmente um satélite e não mais uma deusa, permanece determinando o momento da “castração” do maguey.

Os mezcales que provei

Los Danzantes (blanco e reposado), da região de Oaxaca (100% Agave spadín)
Mezcal pechuga: feito em dias festivos, esse mezcal artesanal de Oaxaca inclui em sua terceira destilação um peito de um pato (pechuga), que lhe confere sabor particular.
Alipuz, da região de San Juan


A oração ao pulque, na parede da pulquería de Tlaxcala


Pai nosso que estás nas pencas
Clarificado seja seu suco
E faça-se um tinacal*
Aqui na terra como no céu
Pulque do maguey nos dai hoje
E cura nossas crudas
Assim como nós curamos as de nossos amigos
E não nos deixe cair na prisão e eternamente livra-nos do mal mezcal, amém.


* lugar onde se produz o mezcal

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Que viván los tamales!


Cidade do México - quarto dia

istock photo
Um dia, ganhei um livro de um importante pesquisador norte-americano, Jeffrey Pilcher, que discutia a importância da cozinha como formadora de identidades nacionais, tendo como estudo de caso o México e um de seus grandes símbolos alimentares - os tamales. Lendo Que viván los tamales!, não conseguia compreender essa comida diante da infinidade de pratos e preparações derivadas do milho, um dos quatro pilares da cozinha mexicana desde sempre (ao lado dos frijoles, dos chiles e do cacau).

Pois em minha segunda noite na Cidade do México pude espiar um pouco deste universo que são os tamales e suas variações por todo o país. Lourdes levou-me ao primeiro Laboratório do Gosto (em 2009) - como se chamam os encontros periódicos dos adeptos do movimento Slow Food em todo o mundo. Naquela noite, o tema do encontro versava sobre os tamales.

Tamales são, mais do que as tortillas, um símbolo de identidade entre os mexicanos. Tamal significa "envolto cuidadosamente", e é uma espécie de pamonha sofisticada: a base, feita de maíz (milho), leva tantos recheios quanto são os ingredientes da cozinha mexicana; depois de misturada à banha de porco, caldo de carne ou água, a massa de maíz é embrulhada "cuidadosamente" e cozida em vapor.

São mais de 1.400 tamales descritos, que se diferenciam segundo as regiões do país, as diferentes folhas que os envolvem (de bananeira, do milho, de hierba santa etc.), as proporções de ingredientes (quando são recheados, por exemplo), o tamanho, o modo como são embrulhados, a maneira de preparar a massa de maíz. Há tamales que têm a espessura de um dedo (tamales porteños) e aqueles que alimentam até 300 pessoas (tamale zacahuil); há tamales recheados de carne, cogumelos, chiles, moles, verduras, frutos do mar, frutas, nozes, flor de abóbora e até mesmo doces. São consumidos no dia-a-dia, mas também em festas, dias santos, batizados.

Os homens não tocam na massa: todo o manejo do maíz é feito por mulheres. A eles cabe amarrá-los quando são grandes, como os zacahuil, tamal tradicional da região da região de Veracruz. Este é cozido em forno de barro, semelhantes aos de assar pães. Depois de aquecido, o forno é fechado com ladrilhos e com barro e o tamale é cozido durante toda a noite.

Foi um deste que provamos naquela noite, além de outros quatro: tamal borracho, que leva chile e carne de todas as partes do porco (principalmente a cabeça); o pibil pollo, da Península de Yucatán, mais firme, cozido em forno de barro e muito gostoso; o tamal de cazuela, ou seja, de "caçarola", típico de Veracruz e Tamaulipas, que leva mole e epazote (mastruz) e recheio de carne de porco ou frango, não se envolve em folha alguma, mas cozinha-se em uma caçarola de barro - foi o de sabor e textura mais delicados e meu preferido; e o tamal borracho em tamanho pequenino, com sabor defumado e massa mais seca.

São tradicionalmente acompanhados de uma bebida incrível - o atole, feito de maíz e água. O que tomammos aquela noite chama-se champurrado, uma variação do atole que leva cacau, muito consumida no centro do país.

Assim como muitas outras comidas prehispânicas, os tamales sobreviveram por 500 anos, a despeito dos esforços das classes governantes de europeizar o México, tentando substituir, por exemplo, o milho pelo trigo. em seu livro, Pilcher explica que, no século 20, essas comidas tornaram-se parte essencial da ideologia indigenista que emergiu após 1940, quando uma classe média urbana e crescente se apropriou das comidas nativas populares e elevou-as a símbolos da cozinha nacional. Que vivan los tamales!