Revendo alguns posts, deparei-me com um dos poucos em que discuto minha área de especialização – a história da ciência -, e a relaciono com cozinha (que é, para os que ainda não me conhecem, meu tema de pesquisa). No post de hoje essa relação se estabelece novamente, envolvendo mulheres, ciência e cozinha. Mas, desta vez, reproduzo as palavras de uma grande especialista na área, Ana Maria Alfonso-Goldfarb. O texto abaixo é uma seleção de trechos extraídos de uma matéria, publicada no site da revista Pesquisa Fapesp (a íntegra está no link xxx) por Elton Alisson e que, por sua vez, nasceu de uma palestra da historiadora na abertura do Ciclo de Conferências Ano Internacional da Química, promovido pela Sociedade Brasileira de Química e pela revista no ano passado. Espero que gostem.
A cozinha franqueou a entrada das mulheres no laboratório científico – o marco da ciência moderna que se transformou em um espaço eminentemente masculino, onde algumas delas se destacaram a duras penas em áreas que até então não atraiam a atenção dos homens. (...)
De acordo com Goldfarb, foi por meio da habilidade de atear e controlar o fogo para preparar os alimentos – considerada uma atividade difícil e propriamente feminina – que as mulheres ajudaram a desenvolver até meados da Idade Média uma série de produtos. Entre eles estão os primeiros destiladores, extratos, além de perfumes, medicamentos, pomadas e licores.
“A cozinha era um espaço restrito para a maioria das mulheres. E foi entre a preparação de caldos e guisados que elas começaram a praticar o trabalho de laboratório desenvolvendo uma série de produtos que, posteriormente, passaram a ser utilizados por médicos e botânicos, na maioria das vezes se apropriando das descobertas femininas e não lhes atribuindo o devido crédito”, disse.
Segundo a pesquisadora, foi entre os séculos 16 e 17, quando o prelo se tornou importante e aumentou a circulação dos livros, que a “medicina da cozinha” ou “química das damas”, como foi denominado esse trabalho realizado pelas mulheres nos laboratórios-cozinha da época, ganhou maior importância.
Algumas delas, que tinham mais posses ou importância social, começaram a publicar livros com seus nomes. Uma delas foi a rainha Henrietta Maria (1609-1669), da Inglaterra, que financiou a edição do livro The Queen’s Closet Opened.
Entretanto, essa fase, que durou entre 50 e 60 anos, acabou justamente no momento em que surgiram os laboratórios, que marcaram a ciência moderna. “Como decorrência desse fato, as mulheres começam a voltar discretamente para a cozinha”, disse Goldfarb. Já no século 18 surgiram os grandes salões literários, onde as mulheres ditaram o tom.
Porém, de acordo com a pesquisadora, elas não tinham acesso às sociedades científicas ou aos grupos restritos de cientistas da época, onde a ciência, de fato, era feita.
Em função disso, são raros os exemplos de mulheres que conseguiram ter algum destaque, ainda que superficial, na ciência realizada nessa época. (...) Já entre os séculos 19 e 20 se iniciou o processo de educação científica feminina nos países saxônicos e anglo-saxônicos a conta-gotas, quando as primeiras mulheres conseguiram ter acesso aos colleges. Porém, a maioria que conseguia se formar acabava voltando para casa frustrada, por não conseguir trabalhar. (...)
Não por acaso, Marie Curie (1867-1934) se tornou a primeira mulher a ser laureada com o Prêmio Nobel de Química, em 1911, e o de Física, em 1903, que dividiu com seu marido, Pierre Curie (1859-1906) e com Antoine Henri Becquerel (1852-1908), justamente por suas pesquisas sobre radioatividade. (...)
De acordo com Goldfarb, além de Marie Curie, outras mulheres de sua época foram indicadas ao prêmio Nobel. Porém, a cientista francesa conseguiu se distinguir das demais e não se tornar mais uma “ilustre desconhecida” na história da ciência, além de sua genialidade, pela maneira como conseguiu projetar sua imagem.
O trabalho [de Marie Curie, sobre radioatividade] só foi reconhecido e passou a ser discutido pela comunidade científica da época quando Pierre [seu marido] assinou juntamente com ela os resultados. “Esse reconhecimento científico só ocorreu quando se formou a figura do casal. E esse fato tem uma relação direta com uma noção de gênero que havia na época (...)”, disse Gabriel Pugliese, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), durante o evento. Segundo Pugliese, por essa noção de gênero da época, o homem era vinculado à política, ao espaço público, enquanto a mulher estava restrita à esfera privada, aos trabalhos domésticos.
Enquanto Marie ficou encarregada de realizar os experimentos para purificar os elementos radioativos (o trabalho “doméstico”), Pierre foi incumbido de estudar as radiações emitidas pelas substâncias químicas (o trabalho de laboratório).
“Isso também tem relação com a noção de laboratório como cozinha, em que Marie Curie aparece como aquela que faz os experimentos, uma auxiliar do Pierre, enquanto ele faz o trabalho mais prestigioso de pensar e cumprir o ofício de chefe do laboratório, procurando recursos e estabelecendo relações com outros cientistas”, disse Pugliese.
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