quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Comer com os olhos. Primeira aula
Ao receber a programação da Casa do Saber, onde fiz um ótimo curso de introdução à filosofia, anos atrás, deparei-me com um novo tema. "Comer com os olhos - cozinha e arte no Ocidente Europeu" é uma proposta, em 4 aulas, de abordar o papel da comida no imaginário europeu entre os séculos 15 e 19, usando como veículo obras de grandes mestres da pintura. Ontem fui à primeira aula.
Essa ligação entre imaginário e comida vem atraindo uma série de pesquisadores na Europa. Lidar com o imaginário das pessoas é uma tarefa difícil, e fui conferir o que os meus olhos poderiam apreender de novo. Durante todo o tempo, imagens de banquetes (começamos na Idade Média), como a que reproduzo acima, conduziram a exposição da historiadora Tereza Aline Pereira de Queiroz, uma senhora moderna de cabelos grisalhos longos, bem articulada, de voz firme.
Soube, por exemplo, que nos banquetes medievais, a comida dos convidados estava relacionada à posição social que ocupavam, ou seja, nem todos em torno da mesa comiam as mesmas coisas (lembrando que não havia garfos, nem pratos individuais, nem guardanapos). Também descobri (comentário de um dos alunos, num momento descontraído) que a melhor batata frita é feita em gordura de cavalo (!). Infelizmente, não será possível fazer essa experiência - vou consultar o Hervé This!
Seguiram-se depois imagens interessantíssimas dos banhos públicos medievais, onde, segundo Tereza, circulavam as prostitutas. Homens, mais velhos, eram retratados em companhia das jovens nas banheiras (uma espécie de ofurô) e diante de uma mesa repleta. A relação feita está nos interditos: pecado comer em abundância, pecado fazer sexo.
Tudo foi muito bem até chegar o momento em que foi abordado a razão da utilização de uma enorme quantidade de especiarias na culinária medieval. E aí veio a confirmação do quão específico é o estudo histórico da alimentação, e como hipóteses que não são mais válidas continuam sendo repetidas por aqueles que não são especialistas na área (Tereza trabalha história social no medievo), num momento em que a gastronomia está com tudo e todo mundo quer saber dela - mas poucos sabem exatamente o que dizer. As especiarias, diferentemente do que foi dito em aula, não eram utilizadas para esconder o gosto de comidas estragadas. Vou reproduzir aqui um trecho do meu livro Arte de cozinha que esclarece a questão do uso de especiarias na dieta do medievo, a partir do posicionamento atual de especialistas no assunto:
"Algumas hipóteses dos que se debruçam sobre as transformações culinárias desse período tentam dar conta dos motivos pelos quais elas ocorrem. Por que, por exemplo, o açúcar encaminha-se para a periferia do menu? O motivo desta migração não se basta na explicação de que houve um aumento no consumo e na divulgação do açúcar, que atingiu preços melhores e maiores quantidades.
Também não são suficientes em si mesmas, ou até mesmo improcedentes, as razões tradicionalmente apontadas pelos historiadores da alimentação com relação à utilização medieval de especiarias, cuja busca, assim como a do ouro e da prata, lançou os europeus à conquista dos outros continentes. A tese de que elas serviam para a conservação de carnes ou para mascarar o gosto dos alimentos mal conservados é atualmente descartada. Os agentes de conservação, segundo alguns, eram o sal, o vinagre e o óleo, e as carnes eram consumidas bem frescas, pelo menos entre os senhores. A justificativa de distinção social não deixa de ser verdadeira, mas é superficial, uma vez que não é a condição mais importante de seu uso; a de que os ocidentais teriam aprendido a utilizar as especiarias com os árabes também não se revela adequada, já que seu uso na Europa, embora em menor variedade, é anterior às Cruzadas e ao surgimento do império árabe. Respostas mais elucidativas talvez sejam aquelas que, enquadradas em um contexto europeu geral, permitem acompanhar tais mudanças a partir de aspectos médicos ou químicos do período em questão." (Arte de cozinha, pp. 50-51)
Essa posição, mais detalhada, pode ser encontrada na obra História da alimentação, de Flandrin e Montanari (ed. Liberdade). Livro, aliás, recomendado na aula. Vamos ver o que a próxima nos trará.
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4 comentários:
crica, é um sucesso esse seu lado acadêmico misturado com texto gostoso. adoro.
Tá muito classudo esse seu blog, Cris!!!
thanks prás 2 amigas queridas
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